Aforismos anestésicos...

... Nada mais nada menos que aquelas máximas que nunca ninguém leu mas todo interno/especialista ouviu da boca de um anestesista. Ou se amam ou se odeiam!!!







quarta-feira, 29 de setembro de 2010

"Lê com atenção as fichas anestésicas anteriores do teu doente"

Mas não só. Verifica igualmente a existência ou não de consultas prévias à actual por forma a avaliar se houve intercorrências ou outras cirurgias no intervalo entre as duas.
As fichas anestésicas anteriores são de um valor inestimável. De vez em quando as cirurgias são idênticas ou acarretam o mesmo grau de agressividade e permitem-nos avaliar a resposta do doente à cirurgia, no que diz respeito a estado hemodinâmico, diurese, necessidade de fármacos anestésicos, respostas vagais, entre outros. Não esquecer a resposta do doente à agressividade anestésica!
Permitem-nos igualmente perceber se houve alguma dificuldade na abordagem da via aérea e de que forma foi vencida (se foi...). Ou dificuldade na punção venosa. Ou se houve alguma intercorrência durante o acto cirúrgico que tenha motivado alguma atitude anestésica (ex: alergia a fármacos). Ou ainda... De que forma o doente recuperou da anestesia (Imaginemos um doente com DPOC; foi extubado? Houve necessidade de reintubação? Espasmou?)

Gostava, sobretudo, que ficassem com a noção que não é errado nem vergonhoso copiar um acto anestésico prévio (fármacos anestésicos, analgésicos, grau de invasibilidade de monitorização, anestesia geral Vs regional) porque se o doente gostou, se se portou bem, se não acham o acto anterior desajustado à cirurgia actual, então porque não repeti-lo. Simplifiquem, o doente agradece!!!

"KISS: Keep It Simple Stupid!"

Ou seja: simplifica-te!!! Simplifica as tuas ideias, os teus actos, o teu doente.
Simplifica as tuas ideias, sobretudo se garantem a segurança do teu doente. Estou a falar, por exemplo, dos algoritmos de via aérea difícil. Tenta manter bem guardado na tua mente os passos fulcrais dos mesmos, sem os quais haverá um aumento da morbi-mortalidade do doente.
Simplifica os teus actos, ou seja, a abordagem anestésica ao doente ("menos é mais!"). Deverá ser a mais simples que diminua ao máximo o risco de complicações, aumente ao máximo o conforto e segurança do doente e promova o melhor terreno para a abordagem cirúrgica.
Simplifica o teu doente, sobretudo no transporte. Quem gosta de sistemas de soros enrolados uns nos outros, sem saber onde se encontram as torneiras de 3 vias ou para que lado se injectam os fármacos? Se isto já vos aconteceu (e já vos aconteceu!!!) foi apenas desorganização e complicação!
Conselho: restrinjam o número de soros, de seringas perfusoras e deixem, se possível, os lúmens livres do catéter central. É tão fácil arrancá-los inadvertidamente...
Ah... e se um doente tiver muita tubagem acoplada a si próprio, tirem-lhe a roupa de cima aquando de uma passagem de de macas. É tão fácil deixar um catéter vesical para trás...

terça-feira, 7 de setembro de 2010

"Fixa o tubo como se a tua vida dependesse disso; a vida do doente depende!"

Até há bem pouco tempo atrás, no Hospital do São José, não havia interno que não fixasse um tubo endotraqueal com adesivo até meio do tubo, seguindo a máxima à risca!!!
Recordo com saudade uma demonstração da adequada fixação de um tubo por parte de uma anestesista que tanto admiro: retirou os tubos corrugados do suporte (conectados ao doente) e deixou-os cair... Ficaram suspensos pelo tubo do doente!Então ela disse-me, com toda a calma, que se o doente se extubasse desta maneira, o tubo estaria mal fixo!!! Lindo!!!
Não sou assim tão fundamentalista mas tenho as minhas preocupações de segurança. Fixo sempre o tubo de malar a malar (não se fixa na mandíbula pois é um osso móvel, ou seja, não fixa!), seguido de travão. Se não tiver condições para o fazer (ex: queimado), uso nastro. Se o campo operatório é partilhado com a via aérea uso, para além do adesivo normal, uma tira de adesivo tipo Mefix (mais colante), que se corta em forma de π.
Mais uma dica: em cirurgias prolongadas ponham umas compressas embebidas em soro na cavidade oral do doente. Assim não há baba que descole o tubo e o doente, se superficializar, já não morde o tubo.
Apenas não se esqueçam das compressas lá dentro ao acordá-lo. Acreditem, não é agradável!

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"Kinkar pode matar... ou enervar!"

Para quem não sabe, quase todo o material anestésico está sujeito a um kinking, ou seja, a dobrar-se.

Há um material que me enerva extremamente quando kinka: os "abbocaths"!!! Nada mais irritante que um catéter que não debita volume como esperaríamos. E porquê? porque se insiste em pôr gravatas após cateterização periférica para fixar melhor o catéter! TRETAS!!!
Só se quiserem kinkar o catéter (acontece tantas vezes!). E o maior problema é tirar a gravata para deskinkar o catéter. Ai que nervos!!! Ponham 2 tiras de adesivo tipo Mefix a travar o catéter, garanto que chega.

Por outro lado existem kinkings bem mais graves (e igualmente enervantes!) que devem ser precocemente reconhecidos:
o tubo endotraqueal (alarme de pressão alta na via aérea e dessaturação) - tenham muito cuidado com um kinking de um tubo aramado porque já não dá para deskinkar e implica troca imediata de tubo ;
os tubos corrugados (alarme de pressão alta na via aérea se ramo inspiratório ou pressão na via aérea progressivamente maior se ramo expiratório... até ao barotrauma!) ;
os prolongamentos das seringas perfusoras, nomeadamente das aminas, cujo kinking pode levar a colapso circulatório (de realce que se deve usar SEMPRE prolongamentos rígidos e não moles, para não terem dissabores);
o catéter epidural (dor!!!), que deve ser visto de fio a pavio e não retirado de pronto quando não se consegue injectar um fármaco.


domingo, 5 de setembro de 2010

"Quando já nada há a fazer, desconecta o tubo traqueal e sopra nele!"

Esta é forte e algo que espero nunca ter de fazer (enquanto há Ambu há esperança!).
Mas dá realmente que pensar, sobretudo porque já me aconteceu algumas vezes ter de desconectar o doente do ventilador (do bloco e portátil) e ventilá-lo com Ambu, por avarias várias dos mesmos.

O mais importante para que nada passe despercebido e consigamos manter o doente em segurança será o de ter um algoritmo na cabeça quando se suspeita de alguma avaria.
Existem alguns passos chave:

Verificação do ventilador antes da indução anestésica (ver se os limites dos alarmes são os correctos).
Olhar para o doente e assegurar a sua adequada expansão torácica.

Se o ventilador não cicla ou o doente dessatura (e é real) e os alarmes disparam deve-se ver se o doente expande, se o fole do ventilador enche, qual o limite atingido (no caso será o limite mínimo do volume/minuto). Caso algum dos itens se confirme comecem por ver se o tubo traqueal se desconectou (deve rondar os 80%). Outras hipóteses seriam uma extubação acidental, traqueias rotas, avaria intrínseca do ventilador e mais outras mil.
Assim sendo, se não se fizer o diagnóstico em tempo útil (tempo que leva o doente a ter uma Sat O2 < 90%), conecta-se o doente ao Ambu (de preferência com reservatório e ligado a fonte de O2) e faz-se a pesquisa da falha com calma... sempre muita calma!

"ABC of anaesthesia: always be cool, always be cocky!"

Tradução: Um anestesista deve ser sempre cool e sempre atrevido.
Pessoalmente, aplico esta máxima na relação que mantenho entre o staff e na abordagem anestésica.

Se transmitirmos calma e boa disposição teremos sempre um staff que nos acompanha, do nosso lado, pronto a colaborar e confiantes do seu valor. Um certo atrevimento leva a risos e sorrisos, companheirismo e estreitamento de relações inter-pessoais.

Abordando o doente e o acto anestésico de forma descontraída transmitirá a sensação que controlamos a situação com mestria (mesmo que não seja esse o caso!!!). Se formos atrevidos (prioritizando sempre a segurança do doente) e idealizarmos, experimentarmos, partilharmos... evoluiremos... muito!

De qualquer forma, se querem ser bons anestesiologistas necessitam de um terceiro adjectivo: sempre alerta! Conjugando os 3 atributos imprimirão uma segurança rara que todo o staff apreciará.

"Só se começa uma anestesia quando se olha olhos nos olhos com o cirurgião"

A única desvantagem deste ponto será a de se perder tempo operatório mas os benefícios da espera reflectidos em qualidade suplantam largamente o contratempo do tempo.

Um cirurgião presente fornece-nos informações preciosas no que concerna o estado do doente préoperatoriamente, como decorreram cirurgias prévias, anestesias prévias, posicionamentos, possíveis complicações, o estado do tempo, da nossa selecção, entre muitos outros assuntos que nos dão a percepção das dificuldades para além de estreitar relações entre o staff e transmitir segurança e concentração a uma sala operatória.

Por outro lado será sempre indesejável ter de recuperar um doente induzido porque o cirurgião adoeceu, ficou preso no elevador ou partiu o braço quando caíu no pátio escorregadio do hospital enquanto mandava um SMS ao anestesista a dizer que ele já podia começar a anestesiar porque estava mesmo a chegar!

Pior ainda, anestesiar o doente errado, o braço errado....

sábado, 4 de setembro de 2010

"O cirurgião tenderá a culpar o anestesista pelos seus próprios erros"

É verdade que se ouve algumas vezes a lamentação de um cirurgião de que a culpa foi da epidural ou que o doente não vai ser operado porque o anestesista não deixa ou que demorou mais tempo porque o doente não estava relaxado.
Não duvido que também existam anestesistas que estejam sempre a complicar e a pedir explicações fúteis aos cirurgiões.
Pouco tenho a dizer desta máxima pois é da natureza humana a procura incessante em "fugir com o rabo à seringa".
Só sei que todos nós cometemos erros e a responsabilidade deve ser assumida e muitas vezes repartida. Os erros deverão ser sempre avaliados e medidas tomadas para os evitar de futuro.
Apesar de soar a cliché, parece-me a única maneira de evitar esta máxima que tanta discussão e mal-estar traz a um staff de bloco.

"O cirurgião considera-se duas vezes mais rápido do que realmente é"

É impressionante a veracidade desta frase e pena é que assim seja porque poucos percebem como a nossa noção de determinado tempo operatório condiciona a nossa estratégia anestésica, enquanto manuseio de fluidos, abordagem de via aérea, profilaxia de náuseas e vómitos e invasibilidade do doente.

O ideal será conhecer bem o cirurgião, perceber em que fase operatória está, se há fase com maior probabilidade de perdas sanguíneas, pedir updates cirúrgicos horários e outras informações que considerem pertinentes.

Em jeito de conclusão, diria que o mais importante não será o tempo cirúrgico mas sim a qualidade anestésico-cirúrgica e a adequada comunicação entre o staff.

"Anestesiar bem é uma arte!"

Gosto desta máxima porque combina comigo... e porque é verdade.

Sempre achei interessante o facto de muitos anestesistas terem como passatempos artes tão variadas como a pintura, literatura, fotografia ou cinema, de as discutirem tão apaixonadamente e nelas participarem activamente.

Encarando o acto anestésico como mais uma contemplação artística, em que se tenta uma simbiose perfeita de atitudes/fármacos/coordenação/liderança/antecipação que promovam uma envolvência de segurança/tolerância/conforto/analgesia face a um qualquer acto cirúrgico, sai-se do bloco operatório com a total consciência de uma plenitude de satisfação perante todo um processo artístico vivido.



Tendo eu já constatado este facto, parece-me de todo incompreensível que existam anestesistas com perfil único de "mida, fenta, propofol e atracúrio" ao longo de todo o perioperatório!