Aforismos anestésicos...

... Nada mais nada menos que aquelas máximas que nunca ninguém leu mas todo interno/especialista ouviu da boca de um anestesista. Ou se amam ou se odeiam!!!







domingo, 10 de outubro de 2010

"Não se promete a um doente algo que não esteja nas tuas mãos"

Esta máxima é tão certa e no entanto tão difícil de seguir (no que me diz respeito), porquanto um médico tem como objectivo preservar a vida, contrariar a morbilidade e dificilmente aceita tudo quanto não corra tão bem.
Daí que, à priori, nem lhe passe pela cabeça que algo possa correr mal ou, se tal acontecer, não se possa tratar.
O problema é o de transmitir esses sentimentos reconfortantes ao doente ou à família, esquecendo-mo-nos das excepções (quando tudo se complica).
Basicamente, não se deve dizer frase como "vai tudo correr bem", "é só adormecer e acordar", "não corre perigo de vida", "vai recuperar totalmente".
Estas frases estão correctas na sua essência mas a vida/morte, recuperação/sequela são temas que por vezes nos escapam pelos dedos e apresentam desfechos inesperados.

"Precisas de mais acessos venosos quando o cirurgião está a operar perto de um vaso que tu reconheces"

Esta máxima não tem muito que se lhe diga, é apenas uma brincadeira que tem o seu quê de responsabilidade.
E eu iria mais longe na máxima e diria "acessos grandes e gordos se o cirurgião opera nesse mesmo vaso cujo nome tu conheces".
Basicamente esta máxima foca o nosso senso clínico. Trabalhando-se perto de vasos de grande calibre como uma aorta, cava, carótida, podes precisar de fazer volume ou mesmo vasopressores (se patologia associada cardíaca), daí precisares de 2 bons acessos +/- catéter venoso central.
Caso não conheças o vaso perto de onde o cirurgião está a trabalhar, é bom que ele o conheça e melhor ainda que ele te avise da sua importância (preferencialmente preoperatoriamente e não quando a rasgou!!!)
Por via das dúvidas nunca te esqueças de perguntar se o terreno cirúrgico é muito vascularizado e/ou há perspectiva de perdas sanguíneas importantes. Comunicar é bom...

"Na dúvida chama por ajuda."

Não nos armemos em heróis. Por vezes um par de mãos extra ajuda, assim como um par de olhos extra e um cérebro extra.
Há coisa que nos escapam e por vezes falhamos por desatenção ou por caírmos sempre no mesmo erro, na mesma armadilha.
Não sabemos tudo, há situações que já não nos lembramos ou nunca vimos, execuções técnica em que não temos tanto à vontade mas o doente beneficiará grandemente dela (apesar de eu acreditar que o doente só beneficia daquilo que dominamos!), ou simplesmente não estamos a conseguir, apenas não é o nosso dia.
Podemos precisar de uma opinião àcerca de um traçado electrocardiográfico ou de ajuda para entrar no algoritmo de via aérea difícil.
Deixem o orgulho de lado e chamem por ajuda se assim o necessitarem.
E se o colega conseguir o que vocês não conseguiram (ainda por cima à primeira!!!) não se martirizem o resto do dia porque amanhã acontecer-vos-á o oposto.
Não chamem por ajuda tarde demais senão ela não vos servirá de nada (exemplo: na presença de um doente difícil de intubar não massacrem aquela via aérea com múltiplas tentativas porque não há pior que chamar um colega quando já só se vê sangue por todo o lado, uma epiglote edemaciada ou uma ventilação pouco eficaz!)

"É você que me vai pôr a dormir? Não, sou eu que o vou acordar!"

Se há máxima mais irónica!
Poucos são os doentes que têm noção do que é uma anestesia. Pensam que é dormir e acordar.
Metade dos doentes que vejo na consulta nem sabem que estão numa consulta de anestesia e quando se dão conta perguntam-me se é naquele instante que os vou pôr a dormir!!!
Falta de informação. Deve ser tudo explicado ao doente, em linguagem comum, com recurso a desenhos ou panfletos.
Apesar de tudo têm a ideia que anestesiar não é fácil e esta máxima corresponde a uma pergunta temerosa por tudo o que envolve o acto anestésico. No fundo o que pretendem saber será se e quando eles vão acordar. Daí a importância da consulta de anestesia.
São raros os que ligam à analgesia, ainda é uma questão cultural o facto que ter dores é sinal que estão vivos.
Devemos sensibilizar e apaziguar todos os receios. Por isso se diz que a comunicação anestesista-doente é a melhor medicação pré-anestésica.

"Os doentes são muito resistentes."

E não é que é mesmo verdade???
Poucos são os doentes que não te dão espaço de manobra para pensar, contemporizar, experimentar, contemplar.
Às vezes parece que eles querem mesmo morrer mas não conseguem!
Às vezes parece que há colegas que os querem matar mas não conseguem!
No fundo, todos os mecanismos compensatórios do doente face a uma determinada lesão orgânica funcionam demasiado bem e esgotá-los leva tempo.
Tive a oportunidade de comprovar esse facto durante os 2 anos em que fiz turnos de VMER. Fiquei com a noção que a minha presença e actuação teve de facto um impacto verdadeiramente positivo na morbilidade do doente em +/- 10% dos casos. Nos restantes 90% poderia não ter sido activado que o doente chegaria ao hospital sem agravamento do quadro que motivou a chamada do 112.
Conselho: esta máxima não deve ser levada à letra e, apesar de a saberem, devem tentar sempre optimizar o doente atempada e eficazmente, de forma a não terem surpresas desagradáveis. É que há excepções à regra...

"Nunca entres em pânico!"

Dogma que se aplica a todas as especialidades.
Um anestesista que entre em pânico põe todo o staff em polvorosa, retira credibilidade, confiança e segurança.
Tenta manter os níveis de ansiedade do teu cirurgião os mais baixos possíveis, ele que se preocupe apenas com o terreno cirúrgico, procurando que o resto seja da tua responsabilidade, ele agradecer-te-á.
Tens de passar a sensação que sabes o que se está a passar mesmo que assim não seja, que estás confiante mesmo que não estejas.
E não te esqueças nunca que o pior que pode acontecer é o doente parar; e como tu sabes o algoritmo de suporte avançado de vida na ponta da língua (tens mesmo de o saber!!!), nessa altura terá tudo sob controle.

"O acidente é a coisa mais estranha... Só dás por ele quando já aconteceu!"

Ou seja, andas sempre atrás dele e é sempre tarde demais, a única solução é reagires de pronto em vez de te antecipares e prevenires, como deveria ser.
O truque para evitar acidentes é o de estar sempre alerta, ao doente (saber a sua patologia associada e possíveis intercorrências cirúrgicas), aos monitores e aos seus sons/alarmes.
Prevenir... O mais importante na prevenção do erro e do acidente é arranjares rotinas, rituais de segurança (exemplos: dispôr o material na mesa de via aérea sempre da mesma maneira, verificar o ventilador entre doentes, rotulagem correcta de fármacos).
De qualquer forma precisamos de saber tratar quaisquer complicações (ou pedir ajuda atempadamente), mesmo que não saibamos a causa das mesmas.
Conselho: Qualquer acto pode dar origem a um acidente. Nunca executem algo cuja possível complicação não saibam tratar!